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Desassossego Encarnado - Crônica

Desassossego encarnado 

 O desassossego me acordou às 7h da manhã de sexta, e já fazia um calor nublado no céu e na terra. Roupas de dia de domingo, leves o suficiente para suportarem o mormaço, foram demoradamente escolhidas e o banho fresco não durou o quarteirão que tive que descer até o campus. 
  Ruas e escadas de pedra me levam à casinha de porta verde, número 79 da Rua da Glória, e mal ponho os pés nos tacos de madeira do corredor estreito antes de ser saudada pelo Bom dia caloroso dos que moram aos dias de semana e horário comercial por lá. Bem atrevida já me ponho para dentro e me guio entre as salas, pronta para roubar o que já tínhamos alugado com certa antecedência. Antes que efetive o ato, no entanto, decido descer até nosso ponto de encontro, na expectativa de esbarrar com alguém - mesmo que o relógio teime em estagnar 10 minutos antes do combinado e a tela do celular notifique mensagens que prometem atrasos. Minha ansiedade não reconhece nada disso e insiste que estou atrasada o suficiente para que meu coração dispare. Como prometido, é quase sepulcral a semgraceza do espaço e a vaziez do ambiente. Eu devo ser a única coisa orgânica de lá. O encontro deve ser na sala 203. Confundo a sexta com a terça e no ímpeto costumeiro dos encontros às nove subo as escadas. Entro na sala quase como um furacão. Vi rostos conhecidos ainda de fora do batente e foi o bastante, mesmo que houvesse também uma mulher mais velha à frente. Todos olham pra mim - meia dúzia de gatos pingados com uma dúzia de olhos confusos de graça é o suficiente para fazer minhas bochechas corarem - mas com uma confiança quase cega, que, perceptivelmente só me resolve aparecer nos momentos em que não preciso dela, já me arrumo para sentar. Com um palmo de distância de me acomodar na cadeira, a mente sempre embaçada de pensamentos que dirigem rápidos em dias de chuva e astigmatismo, e as mãos perdidas procurando não-se-sabe-o-quê na sacola de americano cru que tem muito mais que eu precise, uma voz me alcança. “Você não é daqui, né?” não. “Não!” Caio por terra rápido demais, quase na mesma velocidade em que emendo, num só fôlego: “aimeudeus! Erreiasala! que vergonha, pensei que teria encontro de Cultural por aqui, perdão, perdão” e saio mais rápido que chego. Falando assim, sem pontuação. O embaraço não permite pontuação. Sabe-se que é avesso às boas maneiras.  
  Me procuro uma utilidade, então. De volta ao auditório tento arrastar a enorme mesa retangular, que ocupa bem o centro do espaço, e é pesada demais, e logo desisto. Volto aos puffs. De idas e vindas à casinha pego uns 5, cortando caminho pela ponte de madeira, dificilmente confiável, e repetindo esse trajeto algumas vezes, até que a variedade de cores dispute por espaço no cinzento cômodo em que despejaremos nossos corações aflitos e mentes inquietas. Na última encontro Gabriel, que me ajuda a levar os últimos 2 puffs ao auditório. Encaramos um ao outro e jogamos problemas fora. 
  Decido ligar para minha mãe, que me faz falta ouvir a voz e sentir o aconchego, e me dirijo à uma das salas do andar de baixo do Padre Avelar. Nos trinta e cinco minutos de ligação falo de tudo, e o tempo que não a vejo se compacta nos minutos em que escuto sua voz, e a saudade quase sufoca. Com meu pai converso 5 minutos, o suficiente para me chamar de petista e me proibir de ir à manifestações, e tentar outras pequenas censuras infundáveis. Da janela vejo movimentação no estacionamento e é desculpa para me despedir.
  Dez da manhã de um dia muito abafado, ritmado em união de corações irreverentes e no aglomerado de figuras engraçadas e coloridas, tecendo contracultura sob o rasgo fascista que se projetava sobre nós. Os brasis mais lindos encaminharam-se ao auditório. Passos apressados ao arrumar a sala para que o futuro do país entrasse. Duas poltronas almofadadas, vermelhas, que em breve acomodariam as contradições da pátria em formas de gente, num debate uníssono e complementar sobre a cultura. Um homem branco. Uma mulher negra. E seus desdobramentos. 
  Mas aí já eram três da tarde e a fornada de pães de queijo sumira. Debatiam os processos culturais e da tinta azul que derrubava no meu caderno saia só um poema inspirado em Morangos Mofados. Caio ocupou demais do meu frenesim. 
  Haviam muitas intercessões na véspera do fim de semana. A guerra de balões d'água no estacionamento aglomerava quase tanta gente quanto o interior do prédio, em que intercalava três protestos distintos e ainda assim, se complementavam. Azar do projeto nacional de produção cultural - aporte da construção da censura - porque os nativos que se manifestaram desviavam com gosto do meticulosamente programado do Planalto. Quem estava rei não alcança as raízes de nossa luta, e cortara apenas as pontas de nossos ramos. Crescemos de novo, portanto, mais fortes do que Ele esperava. 
  Do cartão postal de 2017 sob a mesa saía a descrição de nosso evento: “essa inquietação latente, descalça” que Hila previra há muito. A mesa continha cartões postais que gritavam algumas histórias em forma de versos, e o silêncio era subjetivo em meio a tanto barulho. Nas dedicatórias, Hila e Sofia rezavam para “que nossos sentidos te emocionem e se façam seus”. E como eram. Como sentíamos todos. Sentíamos muito. E sentíamos, muito. Tanto que o céu sentiu também, e desabou. 
  E pela cortina d'água só me veio Caio Fernando de Abreu, mais especificamente o texto Além do Ponto, e soube, naquele momento, que estas pessoas, aquelas pessoas, elas abririam a porta pra mim. 
  A porta se abrira ali. E entrávamos todos no nosso país.


Gabriela Cortez 


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