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Herói no mundo líquido

1. HERÓI NO MUNDO LÍQUIDO: UMA REFLEXÃO A PARTIR DO LIVRO LUGAR NENHUM, DE NEIL GAIMAN

1.1 O SIMBOLISMO DO HERÓI

          Nos últimos dias, enquanto estava de repouso devido a um procedimento cirúrgico, revi a saga inteira de Jogos vorazes (2015) e terminei o último filme com um sentimento de desolação. Panem é uma sociedade voyeurística que se deleita assistindo a um reality show no qual adolescentes lutam uns contra os outros até a morte. Os cidadãos dos chamados distritos são forçados a alimentar os luxos da Capital, enquanto subsistem em condições precárias. Assim como em muitas distopias, a noção de deus no universo de Jogos vorazes é inconcebível; o Estado, em conluio com a mídia, define o certo e o errado. Panem é, ainda, um mundo no qual as pessoas são incentivadas a serem individualistas e a buscarem aliados apenas quando veem utilidade neles. Se soasse como pura ficção, aquela melancolia de sempre, inseparável de mim, não teria me afetado com maior intensidade, mesmo após o encerramento dos créditos.
          Não sei quando e como exatamente aconteceu, mas aqui, fora das telas, tenho a impressão de que também perdemos o senso de transcendência no sentido espiritual e no sentido humano. Transcender é conectar-se com algo além de si mesmo, o que não parece uma ideia popular nos dias autocentrados de hoje. Reconhecer a vida do próximo como tão necessária quanto a “minha” não é a disposição comum, e admitir a importância de uma virtude não garante a prática dela. Por isso, sobretudo nesses tempos líquidos, quem consegue domar os impulsos egoístas pode facilmente ser visto como herói.
          Devo deixar claro, de antemão, que não me considero heroína. Ser herói, para mim, é, muitas vezes, priorizar as necessidades dos outros e abster-se de prazeres alienantes, o que não me vejo fazendo com tanta frequência. Portanto, se esse ensaio, em algum momento, soar como uma provocação moral, ela é, primeiro, uma afronta a mim mesma.
          Posso dar muitas razões ao leitor para falar sobre o tema do herói no mundo líquido, uma delas consiste em dizer que essa é apenas mais uma das minhas várias tentativas de desatar os nós mentais. Venho me enredando em incertezas — leia-se, também, “aflições” — desde que me entendo por gente. Tenho dúvidas geradas no conforto do seio familiar e tenho dúvidas que emergiram das interações complexas da sociedade “lá fora”. Não à toa, a construção desse trabalho não foi um progresso linear, mas sim um desemaranhar por vezes irritante, apesar de seu valor crucial para mim. Talvez, a figura do herói no mundo líquido seja apenas um meio que encontrei para refletir sobre o meu lugar no corpo social.
          Falar sobre tais assuntos geralmente termina em filosofia, pois a conversa ultrapassa noções de materialidade. Por isso, a fim de trazer uma visão sensível a respeito do mundo contemporâneo, no qual o florescimento do herói pode ser tão espinhoso, escolhi abordar o trabalho do sociólogo Zygmunt Bauman (2001), devido à personalidade filosófica de seus textos. Zygmunt Bauman (2001) produziu um corpo de reflexão que, a meu ver, tem resistido à prova do tempo e se comprovado fiel à realidade.

***

          Segundo o professor de simbolismo Jonathan Pageau (2023a), o herói representa a margem, sendo o ponto de transição no qual duas categorias se encontram, assim como eram os semideuses na era pré-cristã. O herói tem uma natureza híbrida: ele pode ser metade aranha; metade alienígena; metade amazona; entre outras possibilidades. O dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1991, p. 488, grifos do autor) traz definição semelhante:
          Produto do conúbio de um deus ou de uma deusa com um ser humano, o herói simboliza a união das forças celestes e terrestres. Mas não goza naturalmente da imortalidade divina, se bem que conserve até a morte um poder sobrenatural: deus decaído ou um homem divinizado.
          A partir dessa descrição, é possível entender que o herói carrega o valor da transcendência e o dom de unir o aparentemente inconciliável, desenvolvendo tais atributos conforme se permite enfrentar desafios e superar limitações.
Mais tarde, com o advento do cristianismo, o herói passa a ser mais do que um lutador valente de proezas extraordinárias cujo propósito é conquistar honra para si mesmo: agora ele se consolida como alguém disposto a sacrificar-se também pelos mais fracos (PAGEAU, 2023b). São três as atitudes que corroboram sua identidade (PAGEAU, 2023c):
          1. Agir para ajudar os outros;
          2. Não reivindicar poder para si;
          3. Sacrificar-se.
          Acredito que a definição seja de senso comum, embora a fé generalizada em líderes totalitários e corruptos ao longo da História nos prove que o segundo item foi e é esquecido com frequência.
          Não sei se o leitor concorda comigo, mas, com base na minha experiência, sempre tento manter em vista o seguinte: expressões faciais ou palavras eloquentes não se bastam, nossas escolhas e ações revelam quem realmente somos. Por isso, quando o anti-herói Tony Montana, interpretado por Al Pacino, no filme Scarface (de 1983), afirma de maneira enigmática “os olhos nunca mentem”, eu discordo em gênero, número e grau. Atores conseguem forjar um brilho no olhar, um sorriso apaixonado, uma lágrima de comoção, assim como o líder supremo norte-coreano Kim Jong-Um (2023) provavelmente fez ao chorar, em 2020, enquanto discursava sobre os efeitos adversos da pandemia no seu país ditatorial.
         O herói se manifesta numa trajetória marcada por claras atitudes. Ele é, portanto, uma figura moral, exemplificando valores de coragem, justiça e abnegação. Do meu pondo de vista, isso não significa que ele seja perfeito, mas ele evita cometer os mesmos erros e busca manter-se firme em seus princípios, o que certamente não é uma tarefa fácil.
         Mais acima, comecei enfatizando o caráter de exceção do herói, pois essa parece ser uma figura ainda mais difícil de surgir nos dias atuais. Para o mitólogo Joseph Campbell (2007, p. 43), “o herói simboliza aquela divina imagem redentora e criadora, que se encontra escondida dentro de todos nós e apenas espera ser conhecida e transformada em vida”. A questão é: como o herói pode emergir em uma sociedade cujos valores estão cada vez mais voltados para a gratificação instantânea? A vida autocentrada frequentemente obscurece o verdadeiro potencial humano e se omite do cuidado para com o próximo. É importante frisar que o cuidado não pode ser visto como um acréscimo à vida, mas sim como condição essencial para sua existência. Somente assim é possível a minha permanência no mundo e, não menos importante, a do outro (HINRICHSEN, 2012, p. 106-7).
         Trago as palavras pertinentes de Zygmunt Bauman (2023a, p. 7), que diz que
           a extensão planetária da televisão não nos permite mais dizer “eu não sabia” como desculpa para nossa inação. Contemplamos diariamente como se faz o mal, como se sofre a dor, e dizer que nada podemos fazer pelo outro é uma desculpa fraca e pouco convincente, até mesmo para nós próprios. Não há como negar que em nosso planeta abarrotado e intercomunicado dependemos todos uns dos outros e somos, num grau difícil de precisar, responsáveis pela situação dos demais [...].
          Enquanto estudava sobre o herói, lembrei o conhecido episódio do Novo Testamento em que o diabo tenta Jesus no deserto. Essa passagem pode ser interpretada como uma alegoria das tentações diárias empenhadas em nos roubar do nosso propósito duradouro. O diabo começa apelando às necessidades imediatas de Jesus ao dizer: “Se você é o Filho de Deus, ordene que estas pedras se transformem em pães” (BÍBLIA, 2018, p. 1.531). Porém, Jesus sabia que isso implicaria em não mais obedecer ao plano sublime de seu Pai em última consequência. O terceiro e último lance do diabo é um ataque direto ao ministério de Cristo na Terra:
           Em seguida, o diabo o levou até um monte muito alto e lhe mostrou todos os reinos do mundo e sua glória. “Eu lhe darei tudo isto”, declarou. “Basta ajoelhar-se e adorar-me.”
            “Saia daqui, Satanás!”, disse Jesus. “Pois as Escrituras dizem:
            ‘Adore o Senhor, seu Deus, e sirva somente a ele’.”
            Então o diabo foi embora, e anjos vieram e serviram Jesus (BÍBLIA, 2018, p. 1532).
          Caso cedesse à tentação, Jesus não cumpriria o seu propósito existencial de sacrifício pela humanidade, pois corresponder à vontade do diabo envolve a renúncia de uma dádiva maior. Satanás é a mais proeminente representação da alma corrompida no imaginário popular, simbolizando a desintegração da personalidade e a satisfação inconsequente dos desejos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1991). Em outras palavras, Satanás é a antítese do herói; a atração para as armadilhas à beira do caminho que impedem uma vida transcendente.
          De maneira análoga, o mundo líquido moderno tem a sua própria maneira de desviar nossa atenção do que realmente importa. No próximo tópico, irei falar sobre a mentalidade contemporânea e entender como nossa condição sociocultural faz do cotidiano uma distração ao cultivo de uma consciência solidária — e, em acréscimo, nos destitui do papel de heróis.
       [...]

       ENSAIO COMPLETO: https://primo-pmtna01.hosted.exlibrisgroup.com/primo-explore/fulldisplay?docid=puc01000507211&context=L&vid=PUC01&lang=pt_BR&search_scope=Acervo%20da%20Biblioteca&adaptor=Local%20Search%20Engine&tab=default_tab&query=any,contains,escrita%20criativa%20monografia&facet=searchcreationdate,include,2023%7C,%7C2023&offset=0
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