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Para além da aldeia

Para além da aldeia 
Reserva Indígena de Marrecas
Os Kaingang são povos originários que habitam a Reserva Indígena de Marrecas, localizada no Município de Turvo, no Paraná. Eles estão entre um dos cinco povos indígenas mais populosos do Brasil. Sozinhos correspondem a quase 50% de toda população dos povos que falam a língua da família Jê. Atualmente, ocupam mais de 300 distritos distribuídos nas regiões sudeste e sul, com uma população estimada em torno de 50 mil pessoas. Sua cultura desenvolveu-se no bioma dos pinheiros, ocupando a região sul do atual território brasileiro. Possuem grande apego ao mantenimento da tradição e perpetuação de sua cultura, caracterizada por conservar e preservar valores sociais, crenças e costumes na coletividade
de seu povo.

O saber tradicional Kaingang está interligado a elementos milenares da cosmologia indígena, servindo como uma ponte que conecta os caminhos da ancestralidade com a descendência. Ambos estão intrinsecamente ligados à transmissão oral dos ensinamentos dos mais velhos da tribo (as Mapulus e os Kofás), por meio da escuta e da observação, que são primordiais para o aprendizado dos mais novos.

Os ensinamentos passados de geração a geração conectam o presente e o passado à memória dos saberes e conhecimentos históricos do povo Kaingang da Terra Indígena de Marrecas, que são explorados através dos espaços comuns que envolvem a mata, os animais, os rios e as plantas. O alicerce dos pilares da ancestralidade é a educação tradicional, que atravessa o tempo a partir da reminiscência, transferindo os saberes para as gerações seguintes e perpetuando a cultura milenar Kaingang. Essa educação tradicional indígena instrui as crianças desde muito cedo sobre suas origens, suas individualidades, tal qual a coletividade e o respeito mútuo a todas as formas de vida.

A infância não representa apenas o pontapé inicial. O ponto chave está na ancestralidade e na vitalidade com que a memória nos constrói, nos sustenta e nos conduz para experienciar as vivências. Sendo assim, a infância exerce um papel fundamental nos processos de resiliência indígena, já que durante essa fase desenvolvem a consciência de coletividade e pertencimento, e a importância de cada ser na luta para a perpetuação de sua cultura. As crianças indígenas representam o passado por serem a sucessão dos seus antepassados, assim como o futuro, pois são as sementes que germinarão frutos às próximas gerações. E principalmente são o presente; presentes do agora.
 
Ao visitar o Colégio Estadual Cacique Otávio dos Santos no mês de agosto de 2022, pude entrar em contato com as crianças Kaingang, ouvir seus relatos, seus sonhos e aspirações para futuro. É apaixonante olhar para o brilho no olhar nas crianças quando falamos sobre infinitas possibilidades de enxergar o mundo de uma nova forma, de enxergar a própria vida. Ouvi algumas crianças pelo caminho me falando sobre realizar sonhos e isso me leva para infinitos pensamentos: Quais sonhos nossas crianças sonham? Quais sonhos nossas crianças engolem porque a realidade é densa demais para ter tempo de sonhar?
                                          “Æg tÿ ø to há æn jãgtig æg tóg tð.”                                        
“Eu tenho um sonho.”
Gesieli Bandeira, 11 anos, foi minha guia, intérprete e amiga especial. Com seu sorriso doce me disse que tem o sonho de ser enfermeira e curar muitos doentes. Sua grande inspiração é sua avó, que é curandeira há mais de 60 anos, e lhe ensinou o valor da cura e dos remédios que a natureza dá, as rezas e preces que fazem aos antepassados, e a fundamental conexão que têm com a Mãe natureza. Ela me conta com muito carinho que guarda os ensinamentos da avó na cabeça e no coração; lugar onde as lições mais preciosas devem ficar.

“Kujá vÿ, øn kaga tumðg tð.”
“O Curandeiro cura o doente com mágica.”
Maria Bandeira, 74 anos, avó materna de Geisi. A kujà (nome da etnia Kaingang para curandeiros) diz que já curou mais de 200 crianças com seus remédios naturais, provenientes das matas que circundam a Aldeia. Como preservadores do meio em que vivem, existe uma relação recíproca de cuidado e respeito para com a natureza. Para eles os rios são sagrados, às matas são fontes de ervas e plantas medicinais, para cuidar da saúde física e mental do seu povo. A kujà Maria ensinou aos seus descendentes que o índio vive para manter a biodiversidade, utilizando essas fontes para subsistência e não com objetivo de ganância, lições essas que ficarão marcadas para sempre.
“Inh vovo vÿ”
“Quero ser como meu avô.”
Eyshila Mutãn Barão, 7 anos. Com o sorriso tímido e olhar curioso, Eyshila me conta que quer ser como seu avô. Exemplo nítido de como os mais novos se inspiram e admiram os mais velhos da tribo, e desde muito cedo aprendem a valorizar suas lições e experiências. Desde bem cedo as crianças Kaingang são ensinadas a nadar na beira dos rios, a se deslocar na mata com agilidade e a manusear as armas de caça tradicional Kaingang. Eyshila conta que caça animais pequenos, com armadilhas feitas por seu pai e irmão mais velho, denominadas mundéis. Estas atividades são sempre coletivas e envolvem todas as gerações, prezando por relações horizontais de ensinamento e aprendizagem entre os mais velhos e mais novos.
“Gufã pæ ag vÿ, ækonh mø tð, næn kã ra, tá nén kar ko mø jé, kysã tÿ hæn ri ke ki.”
“Os antigos andavam na mata por meses, vivendo do que havia ali.”
Euclydes Mutãn, 76 anos, avô de Eyshila. Caçador, ancião e Kofá da Aldeia Kaingang, responsável por repassar os ensinamentos e tradições da caça e pesca aos sucessores. Exímios caçadores, transitam por extensas áreas em expedições de caça e pesca e usam o conhecimento dos caminhos da floresta não só para defender seu território, como também para manejar os recursos de forma sustentável. Alternando os sítios de caça, pesca e plantação de roças, os Kaingang previnem o esgotamento dos solos e dos animais, sempre respeitando as limitações da natureza.
“Ø tÿ vænhkagta to enhtuno mág han mø tóg tÿ.”
 “Quero ser médica.”
Cizuane Luiz Arthur, 9 anos. Seu grande sonho é ser médica e auxiliar o parto de muitas mulheres, assim como sua bisavó Sanda. Ciz conta que já assistiu muitas mulheres dando à luz, e que ajuda a avó e bisavó no difícil trabalho que é trazer um ser à vida, sempre com muito respeito e amor. Os ensinamentos passados de geração a geração se fazem presente na história de Cizuane, que levará seu sonho a diante, tendo como base grandes lições, mas também semeando as novas sementes para além da aldeia: olhar para os ensinamentos do passado para renovar os caminhos do futuro. O olhar indígena à vida afirma que somos um só, e por isso o respeito é o principal elemento que deve ser praticado diariamente, assim como a sabedoria ancestral, que se manifesta em todas as formas de vida.
“Æg fe tóg, tugtug ke tð.”
 “O nosso coração bate mais forte.”
Sanda Pacanã, 82 anos, bisavó de Cizuane. Mapulu (mulher pajé, anciã mais velha da aldeia e responsável por passar adiante a cultura, história e tradição da tribo) Sanda Pacanã, conta que foi ela mesma quem cortou o cordão umbilical de seus 7 filhos, sem nunca usar tesoura, usando apenas a taquara. As lições aprendidas com sua mãe, hoje estão sendo passadas às suas filhas, netas e bisnetas, perpetuando os saberes milenares da cultura indígena.
“Vænhrá to inh, enhtuna ke huri.”
 “Já aprendi a ler.”
Jeferson Evaristo Candido, 7 anos. Em seu relato, o pequeno Jeferson conta que adora ouvir as histórias que seu avô lhe conta; as de terror e aventura são suas favoritas. Ele diz que vai à escola todos os dias pois está a aprendendo a ler suas próprias histórias. Lá ele pode escolher qualquer livro e sua professora lê para ele quantas vezes ele quiser. Jeferson segue seu avô em todos os lugares, e aprende com ele a importância da leitura. Fica evidente que a educação kaingang possui entre seus principais aspectos a coletividade, ato de aprender com os outros motivado pela reciprocidade. As crianças aprendem vendo, ouvindo, experimentando e executando as tarefas por eles mesmos.
“Vænh rá vÿ, ti krð há nðn kÿ, jagy tø tðnh mø.”
“Escrever não é difícil para quem é inteligente.”
Alcydes Candido, 68 anos, avô de Jeferson. Um dos únicos anciãos alfabetizados em português, além da língua nativa Kaingang. Alcydes me mostra seu livro de contabilidades, onde mantém organizada a venda de balaio e artesanato da esposa. Alcydes frequentou o Colégio Estadual Indígena até aprender a ler e escrever, e conta que foi fundamental para que hoje obtivesse maior independência financeira que os demais familiares da Aldeia. O ancião foi uma das exceções da tribo, e é tido como referência de inteligência e sabedoria. Alcydes uniu seus saberes ancestrais com o conhecimento técnico adquirido na escola, e dessa forma maximizou os lucros que a família tem com a venda de artesanatos, além de dar exemplo a todos os seus filhos e netos dos valores dos estudos.
“Sÿ ã mÿ inh vænh péti kãmén ke væ.”
“Vou lhe contar o meu sonho.”
Tatielly Pollyana dos Santos, 8 anos. Tatielly quer ser estilista de moda indígena. Ela conta que suas roupas vão ser inspiradas nos desenhos dos artesanatos de balaios e colares que fabrica junto com sua mãe e avó. Ela mostra muita empolgação quando fala que vai fazer muitos desfiles indígenas na cidade grande, e espera que as pessoas usem as roupas inspiradas na cultura Kaingang com muito orgulho. O resgate da cultura e artesanato são a essência que será levada para fora da Aldeia e perpetuada pelas novas gerações.
“Kejæn sóg, isð kã mð ækrég tð.”
“Às vezes me lembro da minha infância.”
Jandira dos Santos, 64 anos, avó de Tatielly. Artesã e costureira, Jandira é inspiração para a neta que quer levar as suas origens para além da aldeia. A Anciã conta que aprendeu a trançar a taquara com sua mãe e avó, e que os desenhos ou grafismos provém da origem do seu povo. O artesanato é produzido em família e passados para os jovens para manter a tradição e fazer conservar-se a cultura. Assim como cada objeto reflete a personalidade de cada artesão, a proposta de encorajar os saberes artesanais e valorizar essa cultura, enaltecem a identidade indígena Kaingang.
“Inh fe pæ væ, inh kósin ti.”
“Tenho muito amor aos meus filhos.”
Cleuza, e sua filha Jaquelyne.
“Eu aprendi com minha mãe e meu avô, durante a noite antes de dormir nos deitávamos em volta do fogo para ouvir as histórias do nosso povo. Eu me lembro até hoje das suas palavras, e repito as mesmas histórias para minhas filhas. E espero que elas repassem para todas as gerações seguintes.”​​​​​​​ O relato de Cleuza tem muito a ensinar sobre tempos e afetos, sobre coisas que deixamos para trás numa vida que busca incansavelmente preencher vazios que só podem ser preenchidos com presença, amor e muitas outras coisas que dinheiro nenhum pode comprar. Esses frutos tão bem regados pela ancestralidade dos saberes Kaingang perpetuam de geração a geração.

Bastidores: o que fica atrás das cortinas, o que acontece fora das lentes, o que não pode ser visto é o que constrói o visível, os caminhos andados, relações criadas e ideias surgidas com a câmera pra baixo, são os momentos que fazem o movimento de registro em si fazerem sentido. O que não é mostrado precisa ser sentido. Atrás do visível é que mora a graça; o bastidor de um trabalho sobre a vida é a própria vida e como a olhamos, como vivemos, como sentimos é o que manifesta no momento-ápice de registro. Registro é consequência, o bastidor é quem dita a frequência.
Este trabalho foi desenvolvido na disciplina de Fotojornalismo, do 1° ano de graduação do curso de Jornalismo. 
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