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Crônica - A Maldição de Sigg

Abaixo um início de uma crônica que escrevi utilizando o universo de Tormenta, o maior cenário de RPG nacional.
A Cartola, o Fugitivo e o Circo
A temperatura amena do fim da madruga não impede orvalhos de ainda existirem nas folhas de vegetações rasteiras da mata. A lua mingua e o sol timidamente se prepara para levantar. A floresta não tão deserta como deveria deixa a deusa da natureza irritada com interferências civilizadas de rodas de uma carroça, ferradura de cavalos e passos apressados de um bando de gnolls.
— Não deixem que fuja! – berrou o homem sob o veículo, em suas vestes limpas como quem está na sala comunal de um castelo, porém não está.
O homem parece pouco habituado à natureza que circunda sua carroça. Alto, esguio, limpo. Vestes com aparência chique que nitidamente trouxeram esforço para se comprar. As bochechas rosadas como quem se esforça para não ir ao chão com o sacolejo da carroça acompanham uma dupla de gotas que lhe descem a testa, metade oculta por uma cartola preta com uma fita branca como adorno.
Os gnolls, uma mistura de humanos com hienas, correm incessantemente como se buscassem uma caça para se alimentar, empunhando clavas e tacapes enquanto um deles pilota a carroça e tem ao lado de si uma funda para derrubar o pequenino que corre desesperadamente por entre as árvores mais estreitas na esperança de que seus enormes perseguidores não passem por onde ele passou.
Pouco a pouco alguns dos gnolls mais espertos e ágeis se aproximam do pequeno de pés descalços. Um
deles resvala as garras na perna do fugitivo que por sorte não cai e começa a proferir palavras para si mesmo em um murmúrio como se estivesse cantarolando algo. Antes que pudesse finalizar seu cântico sua outra perna recebe um impacto tremendo para o seu tamanho que o leva ao chão com a cabeça batendo em uma raíz de árvore. Fora derrubado por um ataque de clava.
— Pequenino, achou que fugiria de uma horda de gnolls mercenários somente de entrar na floresta? — Era o homem de cartola. Ele descia de sua carroça muito avariada pelo terreno impróprio como se não se importasse com o estado do veículo, sedento para alcançar sua vítima. Andava desviando de raízes como se fossem cobras, totalmente desconfortável com o ambiente. Era um homem civilizado, pelo menos no que diz respeito a vir de uma civilização. Pisou com a sola de sua bota, já suja dos poucos metros que percorreu a pé dentro da floresta na lateral do rosto do pequenino com a intenção de humilhá-lo ainda mais.
Ao chão, a vítima se mantinha em silêncio.
— Coloquem-no amordaçado e muito bem amarrado na carroça, não quero que me morda. — ordenou.
Pouco tempo depois estavam prontos para partir. O pequenino com suas roupas esfarrapadas e imundas de lama acompanhava com os olhos calmos o seu algoz, pois sabia que estava preso porque queria, era a melhor alternativa no momento. Poderia se soltar em um piscar de olhos, afinal, gnolls nunca foram bons em dar nós e um homem como ele, sempre se livrava das melhores das amarras.

Por pouco menos que meia dúzia de dias, a carroça percorreu por estradas mais favoráveis aos cavalos do que a floresta onde o pequenino havia sido capturado. Boa parte dos capangas havia deixado o grupo, foram contratados somente para a captura. O sol parecia não querer se mostrar e se escondia atrás de nuvens evitando castigar o pequenino mais do que já estava sendo.
A carroça parou.
O pequenino respirou fundo.
— Chegamos. — Anunciou o homem, que agora estava sem sua cartola. Esticando suas roupas para melhorar sua aparência para quem o observava, por mais que estivessem sozinhos.
— Levem-no para os fundos, cela 13. — ordenou, entregando um molho de chaves para um dos gnolls.
O prisioneiro fora levantado da carroça pelos dois mercenários como se pesasse pouco mais que um saco de batatas, cada um lhe segurando de um lado, deixando-o com as pernas curtas e rechonchudas caminhando em falso no ar.
Era visível para quem olhasse, uma faixa escrita à mão: O Excêntrico Circo de Wilbur. Pendurada ao topo de uma tenda vermelha e amarela, suja e enorme, como se estivesse por estradas de toda Caely sem ver um esfregão vez ou outra. Presa por estacas ao chão com cordas reforçadas, que precisavam ser saltadas pelos gnolls para acessarem a entrada dos fundos da tenda.
O pequenino estava ocupado demais se debatendo para olhar.
Puxando uma parte solta do pano, os três entraram nos bastidores do circo. Um corredor de jaulas parecidas
com caixotes gigantes, todos os lados feitos de barras cruzadas de metal. Muitas guardando pessoas e seres das mais diversas raças e peculiaridades.
Nenhum humano saudável ali, somente criaturas bizarras e raras e humanos com deformidades.
— Wilbur mandou que ficasse na 13. — comentou com voz rouca e rasgada um dos gnolls, como quem avisava os presos de onde moraria seu novo vizinho.
Os prisioneiros, muitos moribundos e doentes, mas todos raivosos com sua privação de liberdade, já se levantavam para observar a situação, que infelizmente não era rara. A chegada de mais uma atração para o circo era frequente, e sempre que algum participante de algum número morria ou conseguia fugir não demorava para que fosse substituído. Mesmo assim, algumas celas estavam vazias, e parecia que há muito tempo. Era um local decadente e precário para os “artistas”. As celas vaziam eram a representação da ganância de Wilbur aos olhos dos prisioneiros, sabiam que se conseguisse encheria todas.
O show não pode parar.

O pequenino já estava em seu novo lar, uma cela de esquina com a passagem do lado de fora das grades e ao seu lado uma vazia. Por menor que fosse o homem o local não parecia grande para ele. Lhe trazia um sentimento de privação, abuso e saudade de casa com seu chá e biscoitos. Casa essa que não via há tempos. Desde que começou a se aventurar e conhecer grandes cidades não voltou para a monotonia do lar e aconchego da família, era um homem do mundo, cheio de energia e traquejos para lidar com as mais diversas formas de vida pensantes sem
sequer precisar levantar-lhes uma lâmina. Não que não o fizesse caso fosse preciso, ele somente não precisava. Da mesma forma que não precisava ficar dentro daquela jaula. Sabia que conseguiria usar seus truques para se livrar do ferro com facilidade, mas também sabia que não iria longe caso decidisse correr.
O inimigo mora ao lado

Já havia sido alimentado com algo que não teria coragem de oferecer a animais e tentava dormir no chão frio e duro para esquecer onde estava e a incerteza do dia seguinte. Barulhos de vizinhos de cela lhe impediam o descanso e em certo momento da madrugada algo andando em passos desregrados do lado de fora da cela. Ousando abrir os olhos curioso e vencendo o receio de se ver ainda enjaulado o pequenino identificou de onde vinha o som, que parou próximo. O barulho de fechadura e porta de metal rangendo lhe arrepiou os pelos do braço, nuca, pernas e pés. E um estrondo entregou para todos que o vissem que estava acordado, pois ele deu um salto de susto, mas ninguém parecia vê-lo.
O pequenino esperou que os carcereiros se afastassem e se virou para ver o que havia sido jogado ao chão na cela do lado da sua. Era uma jovem. O escuro não lhe permitia ver com clareza de onde estava, então se aproximou das grades, segurando-as com suas mãos pequenas e dedos gorduchos.
A moça possuía um tamanho normal para humanos, mas ele não sabia se ela era humana. Possuía uma pele morena, do que se podia notar, uma pele normal para humanos, mas ele não sabia se era uma humana. Mãos, pés, roupas imundas e puídas de pessoas que enfrentam
inimigos em campos de batalha. Mas ele não sabia se era uma humana. Algo lhe dizia que não era, talvez uma elfa subjugada como a maioria pelo continente.
O homenzinho notou ferimentos, e antes que conseguisse observá-la como um todo buscou do outro lado de sua cela um pote com água, do tipo que se usa para servir animais domésticos, rapidamente lhe passou pela cabeça que animais domésticos têm uma condição de vida melhor que a dele atualmente. Correu as mãos pelas frestas das celas para alcançar os ferimentos da moça e limpá-los quando notou os cabelos trocados por cobras das mais diversas. Assustado, ele gelou por um instante. Já havia escutado histórias sobre medusas, mas nunca havia visto uma. Do que se sabia eram guerreiras impiedosas e brutais, nunca imaginou que se visse uma delas estaria desacordada e ferida, precisando de cuidados de um hynne.
— Que dia... — suspirou o pequenino enquanto tomava coragem para tocar a pele de sua vizinha.
Era notável, mesmo no escuro, a quantidade de cicatrizes que a moça possuía. Os dedos dele passavam por elas como um cego que lê uma história. Não era cego, mas podia ler a história dela através de marcas de combate.

Um tanto confusa, como quem acaba de acordar após uma noite mal lembrada devido a bebida, a jovem foi descobrindo dores e machucados novos em seu corpo.
Doía agora em lugares diferentes do que no dia anterior pela manhã. O aperto da mão em feridas trazia uma dor maior temporariamente, mas era algo controlado e reconfortante, porque toda vez que se soltava, a ferida voltava a doer só o que deveria, fazendo não parecer muito. Em um de seus primeiros apertos ela se levantou aos poucos, se apoiando na grade mais próxima. Em sua conferência e apertos seguintes notou um pano amarrado em sua coxa.
— Será que Wilbur estava de bom humor? Primeiros socorros só são fornecidos quando se ganha o combate, e eu definitivamente perdi. — Pensou a medusa enquanto observava seus ferimentos mais recentes.
— Desculpa, eu não tinha mais de onde tirar pano. — Era o hynne. Os olhares se cruzaram e a medusa acenou com a cabeça e olhar doce ao ver o pequeno homem com suas roupas rasgadas de onde vieram os curativos que tampavam algumas das feridas mais graves.
A jovem nunca tinha tido um vizinho de cela tão cuidadoso e simpático com ela, geralmente eram animais ferozes e bizarros ou pessoas amarguradas e preparadas para o ataque frente a qualquer interação social.
— Meu nome é Sigg. — Disse a medusa se virando de frente para o homem que havia lhe cuidado com o que tinha em mãos no momento e estendeu o braço para um cumprimento.
— Nimbus. — O hynne a cumprimentou com um sorriso deslocado.
Crônica - A Maldição de Sigg
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