A intenção dessa seleção é um retrato detalhado das profundezas de minha psique, em que sirenes cantam e eu escuto, esperando entre as ondas. O oceano é um tema importante por se tratar tanto da infinidade quanto do movimento, da água vital, das emoções, do que há de mais profundo. Mas são oceanos que vêm entre palavras, versos por vezes dispersos mas que buscam uma união, um ressoar de águas, o embalar da Lua. O falar é importante entre a fragmentação das figuras, que ao mesmo tempo que podem se fundir se separam, se mesclam e se contrapõem, buscando uma liberdade entre a sintaxe tão rígida da realidade através da colagem.

Além das colagens existem os textos internos delas transcritos na legenda das imagens e outros textos que as acompanham que são fluxos de consciência nos slides seguintes a elas.​​​​​​​
inocência, 2021

colagem digital
2810 x 3133 px

transcrição:

enterre meu coração no mar

todos os dias me embriago com a beleza das flores
e quero desaparecer entre elas

force a inocência para dentro de minha garganta

pareço só ser mais uma força destrutiva 
minguante, 2021

colagem digital
3734 x 3734 px

transcrição:

fiquei pensando que iria daqui pra frente só ter
encontros sucessivos com a morte

que precisava me abrir totalmente o peito até que entrasse uma navalha

que nada importa porque em nenhum momento esse encontro com a vida tem significância

só vou morrer, só morrer

mas alguns sinais vêm
só são tão sutis
que eu preciso transformá-los em navalhas
e atravessar o peito

não há como te perguntar aonde
teu coração te leva
só há como ir
e encarar seus monstros

ser ninada pelas ondas, 2021

colagem digital
3734 x 3606 px

transcrição:

não me sobram palavras

está tudo preso

dói imensamente

parece que eu sou o que excede

Nessas veredas e nas sendas que preciso me embrenhar não sei se encontro o lar. Progrido e progrido entre grandes monólitos, falésias de misérias desmoronando entre as falanges de meus dedos que se arriscam tentando petiscar a carne dos montes escalando. A hóstia de meu corpo que me encarrego a entregar no topo do monte, no altar das mil luas, entre meus olhos descabidos do choro que não contenho. O que há aqui? Existe lar? Existe algum espaço para eu me abrigar entre os campos de cravíneas e as urzes em flor? Brotam e surgem dos meus pés, pequenas angiospermas, mas rescendem alentos olentes tão doces, como figos caídos com os açúcares já cristalizados. Tão doce e tão pútrido. Como o sangue rútilo esfacelando-se entre as estepes que se estendem à minha frente. Quase ansio pelos espinhos que acabei de abraçar, porque vejo uma infinitude de chão árido e lágrimas magras. Atraída por um mergulho nas águas mais profundas, encontro um deserto à frente. Ninada pelas ondas do mar, aguardo se eregirem os momentos com o nome dos meus sofrimentos, para eu não precisar emitir palavra. Desaparecer talvez seja um dos meus sonhos, já que minhas fibras parecem feitas da fantasia mais barata. Sou eu mesma um sonho meu? Se eu distorcer com minha visão os meus braços será que eles se estendem até o céu? Talvez eu me estenda até chegar de novo na água, na última fronteira, no mar dos mares. Ali eu encontraria algo de mim, depois de perseguir minha própria inquisição, ou me perderia, enfim, completamente.

faça parecer a noite, 2021

colagem digital
3734 x 2404 px

transcrição:

novos corpos de corpos velhos
remendos

não me permito sofrer

não me permito desistir

de uma causa perdida

acho que sou peixe
acho que sou peixe


faça parecer a noite
e não me deixe mais olhar

tingir de vermelho a romã, 2021

colagem digital
3200 x 2800 px

transcrição:

ouço cantos de dríades mortas
preparo-me para ser engolida


é assim que fica
assim que fica


conto em meu choro, o que está por vir
tentando alcançar
o coração de alguém
talvez o meu

ninguém é tocado
a não ser
pela queda
pela morte
e outros erros bípedes

tomar a escolha do poeta e tornar a ver

tripas poéticas
e mergulhos escusos
descendo aos reinos
vagando infinitamente a esmo
até encontrar o animal
o que pesa e arde
se condenar ao inferno

Amigar-se das ânforas do tempo, mas que tempo? Como espada e copa que se derrama sobre o peito. Mesmo que eu não queira as ondas me encontram em minha paralisia. Quase me levam em sua inconsciência. Azul profundo que desponta em verde, em sua justaposição é tudo tão calmo, vaga sobre mim, mas não em mim, eu apenas permaneço. Embalada num berço salino como a semente de um amanhã selvagem. Faço isso como performance? Como Perséfone faria colhendo flores até ser capturada? Ou realmente só vivo se for nessa dança? Não sei quais forças de sincronicidade me desafiam. Qual vento me leva ao penhasco. Lambido pelas vagas do tempo, banhado com o sumo do vício.
Atravessarei, atravessarei, mas não só. Me aglutinarei à força sensível de um tecido conjuntivo regado de sangue enquanto a Lua mingua. Talvez o querer não seja tão intransferível enquanto lutamos com as causas de genocídio. Não somos livres para criar enquanto estivermos condenados ao produto decadente dessa criação. Engolir escorpiões e defenestrar-se a um mundo consumido por vírus. É a efervescência de uma condição humana que deveria ser peculiar: protagonizar-se da própria morte, fazendo a pestilência se debater contra si mesma até evoluir.
Depois do sequestro tornar a anoitecer-se, provar do escuro profundo. Porque decidimos, como Perséfone, a nos deixar para trás no Hades e permitir o tempo das tempestades se instalar. A decisão do poeta, já também doente.


excrescer, excruciar, excretar, 2021

colagem digital
3861 x 3862 px

transcrição:

como se fratura um oceano?

por mais estúpido e inconcluso que isso pareça
é isso que sinto
cortando meus mares ao meio

dividindo-os
entre amantes

que não aparecem
apenas sombras
repuxos de outros escuros
que me desvanecem


Eu sou o próprio amante que não comparece à cerimônia de concepção do expurgamento de si. Fico nas beiradas assistindo aos massacres alheios sem dar-me conta dos leões no porão de meu coliseu. Eles rugem à noite, mas apenas à noite. Durante o dia miam como gatinhos assustados procurando o leite. O tom de sua sacralidade mais pura e doentia escorrendo entre dedos frementes, mas incapazes de agarrar. A mais ardente necessidade que pinga e pinga mas nunca se faz completa. Difícil ser uma traidora de mim mesma quando meu corpo urge pela minha presença; no mais ignomínio ritual de sacrifício que carne entrego se não a do mundo? A minha própria enquanto não olho, enquanto penso nos fósforos sendo queimados entre a neve, as faíscas se derrubando nas tempestades de poeira. Procurar e encontrar, procurar e encontrar sem nunca se satisfazer, em ciclos de penitência, de olhos vazios e caras viradas e um estranhamento cada dia maior entre o que me deveria ser mais caro. O lar, a família, a pátria, bandeiras há tempo tempo hasteadas e perdidas com o fogo dos anos. Elas retornam, mas somos outros em tempos heraclíteos. Sou uma sombra que me habito, um vídeo que revejo, e mesmo assim ainda uma visão de Gideão. Um estranho, um artefato perigoso entre organismos que fluem tão perfeitamente como mecanismos de relógio. Por isso pergunto-me se há como fraturar um oceano. Como dividir algo tão infinito e tão atrelado a si mesmo em inteireza? Existe alguma bebida da eternidade para um arquimedes caído com o ego estilhaçado entre o aqui e o lá, o passado, as fissuras, e o futuro, os prospectos? Abrir meu corpo é como rezar a um santo do qual esqueci a língua, e o nome. Chamo-o como me chamaria?
oceanos tecidos por saliva
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oceanos tecidos por saliva

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